sexta-feira, 7 de setembro de 2012

A mulher do quadro

Ela levanta, o mar lhe espera: nua, leve. Talvez o amor esteja ao lado da cama. Talvez ela esteja mesmo sozinha. Nua em frente à janela de frente ao mar. Leve, livre, serena, eternizada em borrões de tintas claras. Presa em um quadro de tons azuis.

Será que ela existiu, enquanto o amor atrás dela pintava? Será que ele captou o sensível daquela linda mulher, nua, leve, vestindo o seu roupão em frente ao mar?

Com o olhar perdido, nublado, com o tocar sereno de quem pede um abraço, um beijo na nuca, um envolver-se em torno do teu ventre. Aquela mulher presa na parede é livre, aquela mulher nua em tintas e pincéis tem o mar só para si, eternamente. 

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Dona Dodô

Ninguém sabia de onde ela veio ou sua história. Ninguém sabia quem ela era. Muitas fantasias e poucas verdades. Em um mundo que carece de mistérios, a invenção parece mais interessante. Dodô, era assim que a chamavam, morava em um velho prédio localizado no subúrbio mais abandonado da cidade. Um prédio caindo aos pedaços e com muitas escadas que energicamente ela subia e descia murmurando os seus delírios.

Cabelos grisalhos e longos apontavam uma vaidade desleixada. Suas mechas lisas e cinzas iam até a altura da cintura e me faziam pensar que ela era uma bruxa. Desde pequena, quando minha mãe me contava histórias que tinham bruxas, era o rosto de dona Dodô que eu via nestas personagens. Imaginava caldeirões e vassouras voadoras, gatos e poções espalhadas pela mesa da sala. Sentia medo, mas ao mesmo tempo grande interesse por aquela mulher. O tempo passou, ficaram para trás as histórias e os medos, no entanto, hoje tenho certeza: dona Dodô só pode ser uma bruxa.

A rotina de dona Dodô era simples, vivia sozinha com um gato preto, nunca recebia visitas e só saia de casa para fazer compras e dar o seu passeio solitário no final da tarde. Este passeio, que acontecia todos os dias religiosamente, me permitia observá-la melhor. Tinha a sensação de estar sendo invasiva por segui-la e ficar criando histórias para entendê-la. Mas, gostava desta sensação clandestina de ter um segredo que ninguém mais tinha.

Os seus passos eram leves, andava alienada do mundo, não via ninguém, não cumprimentava ninguém. Com certeza o seu mundo particular era muito mais interessante do que o dos outros vizinhos. Falava consigo mesma, em um idioma incompreensível, ria sozinha, reclamava sozinha, para todos era a louca do bairro, para mim o enigma da existência. Andava com roupas que me lembravam mulheres que frequentam igrejas evangélicas no domingo. Saias longas e blusas de manga. Será que Dodô era religiosa? Vai saber.
Um belo dia, eu reparei que ela estava usando uma aliança no dedo. Parecia estar feliz, prendeu os cabelos e saiu de casa mais cedo do que de costume. Cumprimentei-a como sempre e perguntei como quem esperava que ela me ignorasse: - Para onde vai assim tão bonita dona Dodô? Ela rispidamente respondeu-me: - Hoje é a minha lua-de-mel. E saiu flutuando pela rua.

Não resisti e a segui. Ela caminhava normalmente com uma felicidade que lhe era estranha. Parecia que tinha descoberto algo extraordinário. Para mim ela era a personificação do extraordinário, mas neste dia ela estava diferente. Não sei bem explicar. E aquela aliança, aquela história de lua-de-mel. Já ouvi muitos dos delírios de dona Dodô, suas viagens cósmicas, suas revelações apocalípticas, suas histórias sobre um tempo remoto em uma roça familiar, mas nunca tinha escutado na sobre casamento, amor e estas coisas que nos deixam andando abobalhados pela rua.

 No subúrbio há algumas praias, muito bonitas, mas pouco visitadas devido à distância ao centro da cidade. Dona Dodô, andava em direção à praia das loucas. Tinha esse nome, porque antigamente havia um hospício no terreno que hoje dá acesso a praia, e em algum dia algumas loucas fugiram para tomar banho de mar. De alguma forma, dona Dodô estava reproduzindo esta história, estava repetindo uma lenda. Dona Dodô sabia das coisas, ela era uma mulher sábia, eu tinha certeza.

Ela chegou à praia e ajoelhou-se em frente ao mar, rezou para algum ser do universo, em uma língua que eu não compreendia. Levantou e começou a despir-se sem pudor. Tirou primeiro a sua camisa de manga longa, exibindo seus seios grandes e enrugados e depois a saia que mostrava um corpo marcado pela velhice e pela solidão. Dodô deitou na areia molhada em frente ao mar, apertou os olhos e abriu as pernas, deixando a água penetrá-la. Pude ouvi-la gemer alto de prazer com a água tocando seu sexo. Dodô alucinava e sentia dentro dela a força do desejo do mar, como se fosse um homem. Como se fosse seu homem.

Dodô fez sexo com o mar, era a sua lua-de-mel.

Depois que presenciei aquilo, entendi porque Dodô era tão especial para mim, não necessitava de explicações ou histórias, ela era o que era e isto era atemporal. Louca ou não, bruxa ou não. Dodô era eu também, ela era a natureza e nada mais.